Introdução
Observe-se, primeiramente, que a objetividade pura, livre de valores, é utopia. Tanto assim o é que, mesmo textos científicos, apesar de guardarem certa similaridade formal e de conteúdo, acabam por apresentar particularidades que, por consequente, revelam sua autoria.
Contudo, tem-se por escopo, com o presente trabalho, evidenciar as diferenças, a partir da linguagem empregada, como também dos ângulos fotográficos escolhidos, tanto em Theatro José de Alencar Obra de restauração 1989/1991 como em Relatório Conservação e Restauro, no que diz respeito aos processos criativos envolvidos tanto na elaboração de um catálogo comemorativo – posterior a processo de restauração, sem finalidade crítica, mas sim de cunho principalmente enaltecedor, e até propagandista e romântico – em contrapartida à forma e conteúdo utilizados na execução de um relatório técnico de restauro, a partir do qual se faz nítida a busca pela mais pura objetividade, pelo distanciamento de valores pessoais, e o evidente esforço em evitarem-se adjetivações que qualifiquem decisões e ações por meio do uso de termos puramente subjetivos.
Dessa maneira, a fim de procederem-se às comparações, optamos por reescrever alguns trechos de ambas as publicações – primeiramente, os do catálogo, em seguida, os do relatório técnico – com posterior comentário acerca de suas particularidades diferenciadoras.
Por derradeiro, no que diz respeito às imagens utilizadas em ambas as publicações, também serão objeto de comparação, dado que o enfoque fotográfico é, da mesma forma, característica diferenciadora a indicar os processos criativos envolvidos.
Comentário histórico
“Assim, o prédio do Theatro José de Alencar tinha que ser considerado não apenas como uma edificação antiga admirada pelo seu valor histórico (…). Por certo se estava diante de um prédio inigualável como obra de arquitetura em ferro, e sua beleza, mesmo desgastada como estava antes do início dos trabalhos, era arrebatadora.
A beleza imponente do teatro devolve o registro de uma época de riqueza de quase um século atrás (…). Um documento vivo da cena brasileira do chamado Ciclo da Borracha.
A empresa escocesa Walter MacFarlane & Co idealizou a fachada dentro de um projeto a ser implantado repetidamente em diversas cidades do mundo, influenciada por uma conjuntura internacional de grande expansão do Império Britânico.”
“O Castelo de Amieira do Tejo foi edificado durante o reinado de D. Afonso IV sobre o signo da Ordem de São João dos Hospitalários de Jerusalém, mais tarde Ordem de Malta.
Morfologicamente sofreu ao longo de sua história arquitetônica um processo evolutivo à mercê das alterações políticas e institucionais que ocorreram no nosso território, inúmeras mudanças baseadas num clima de recuo e avanços, de acordo com as alianças e confrontos militares, que durante séculos de fronteiras permeáveis tornaram a raia portuguesa mais ou menos vulneráveis.”
No comentário do catálogo evidencia-se a beleza arquitetônica do teatro e a importância de seu conjunto, com pequeno comentário histórico.
A descrição do castelo embora sucinta evidencia a história de Portugal, sem a preocupação de destacar a beleza do conjunto.
Acerca do diagnóstico
“Para ter uma base melhor de atuação a equipe responsável incluiu uma etapa de trabalho preliminar, anterior ao programa de necessidades, anteprojeto e projeto da obra: um diagnóstico completo do teatro abrangendo a situação das fundações, o estado de conservação das paredes, levantamento das pinturas decorativas recobertas por pinturas lisas e uma pesquisa com a comunidade e a classe artística para conhecer as necessidades e exigências dos usuários em relação ao teatro.
No diagnóstico foram utilizadas até delicadas técnicas de artesanato, como aconteceu nas duzentas e cinquenta prospecções realizadas com mais de quinhentas lâminas de bisturi cirúrgico para descobrir e inventariar oitenta anos de sucessivas camadas de tinta nas paredes e forros, que escondiam pinturas decorativas originais.
Além dos aspectos construtivos, fundações e sondagens de solo, o diagnóstico estendeu-se também por aspectos artísticos, através de pesquisa realizada com usuários frequentes.
Neste diagnóstico foi possível avaliar a extensão e a profundidade do trabalho a ser enfrentado.”
“Numa primeira análise verificamos que os esgrafitos que revestem as paredes apresentam concepção técnica, estilística e uma constituição material muito homogênea. Porém esta identificação nem sempre se traduz numa tarefa simplista, se tivermos em conta que a degradação é um processo inerente aos mais de quatro séculos que passaram desde sua construção e que a concepção de intervenção de conservação e restauro, no sentido em que a encaramos hoje, é relativamente recente, dá-nos a noção exata do grau de dificuldade inerente à identificação de todos os elementos repostos em diferentes momentos, alguns com características materiais muito semelhantes. No sentido de obter um conhecimento material mais abrangente procedemos à observação em meio laboratorial com amostras diferenciadas com o objetivo de decidirmos questões de compatibilidade de material e tipo de ligantes.”
No catálogo, percebe-se que a informação é superficial, para leigos, pois explica prospecções a bisturi como técnicas artesanais e não incorporadas aos métodos de restauro, o relator, no caso evidencia números (250 lâminas, 80 anos de camadas de pinturas) como se isto fosse um trabalho inusitado e heróico, fato que não condiz com a realidade do conservador-restaurador, visto que o emprego de grande número de lâminas de bisturi é corriqueiro em restauração, principalmente no estudo de paredes ou muros onde se suspeita haver pinturas de época.
Há preocupação em demonstrar que o prédio será utilizado após o restauro e que este levará em conta as necessidades de artistas e usuários.
A restauradora, em um comentário técnico, com o emprego de vocabulário específico, evidencia o tipo de material comum e as dificuldades que, em tempos passados, foram enfrentadas em relação à conservação. Não há comentários sobre preocupações com o uso ou utilidade do prédio.
“Desde a inauguração do teatro o prédio tinha sofrido diversas intervenções mais ou menos profundas, a última delas em 1974. Nenhuma, entretanto, teve a amplitude e a profundidade desta última intervenção, em 1989, foi uma restauração e modernização radical. Uma intervenção em profundidade, com a recuperação da identidade histórica da mesma edificação, aproximando-a dos detalhes do que era em 1910.”
A equipe de arquitetos, engenheiros e técnicos da Método Engenharia e da Oficina de Projetos sole & Castro, ao iniciar seu trabalho em 1989, encontrou um teatro cujo estado de conservação era muito ruim, embora do ponto de vista estrutural estivesse estável, questões estruturais mais graves haviam sido contornadas na intervenção anterior.”
“A consulta ao Arquivo d Direcção_Geral dos Edifícios Nacionais e do Inventário Artístico de Portugal (Distrito de Portalegre), revelaram-se de extrema importância, pois permitiram identificar-se através de documentação fotográfica as áreas que à altura apresentavam lacunas de pequena e média extensão, reconstruídas segundo a métrica decorativa existente.
(…) Esta situação (véu de carbonato) é mais evidente nas áreas que foi utilizado o cimento Portland, no restauro de 1950 e na caiação de motivos a branco, onde são visíveis inúmeras lacunas e destacamento, o que denuncia um certo desconhecimento do comportamento de materiais.”
Enquanto o catálogo destaca a “monumentalidade” da reforma e dos envolvidos, divulgando até o nome da empresa responsável, o relatório evidencia a necessidade do conhecimento detalhado sobre documentos; tipos de materiais e suas reações com o decorrer do tempo, novamente com a utilização de termos técnicos.
Procedimentos /Intervenções
“Em conseqüência do telhado deteriorado, o forro do foyer, no andar superior do bloco da frente, tinha cedido quarenta centímetros e era eminente o risco de ruir, o que seria perda lamentável, pois era coberto de valiosas pinturas decorativas originais. Assim, a primeira providência objetiva dos responsáveis foi determinar o imediato escoramento do forro, preservá-lo foi um dos itens importantes na recuperação do registro original da edificação.
Uma das maiores surpresas, depois da remoção de diversas camadas de tintas foi descobrir que o teatro tinha uma pretensão em requinte e acabamento na sua origem. Com as prospecções descobriram-se pinturas decorativas e pinturas de mascaras, quase todas salvas e restauradas, com isto o teatro ficou enobrecido recuperando seu antigo brilho.
Nas paredes o ‘foyer’ havia duas pinturas sobrepostas à original, a solução foi decapar parte da pintura superficial, recuperando pelo menos uma área do registro original. Manteve-se uma “janela”, de aproximadamente dois metros quadrados da pintura original, refazendo-se o restante, já que, em virtude das infiltrações, a pintura original desaparecera na maior parte da sala.”
“A metodologia preconizada para a conservação dos esgrafitos e pinturas murais teve por base a identificação criteriosa de todas as causas-fator que contribuíram para a degradação do conjunto e das patologias consequentes, de modo a delinear o tratamento mais adequado que assegurasse sua preservação.
Neste sentido, e atendendo às características materiais de cada área, o nosso trabalho foi desenvolvido em duas fases complementares: registro-estudo e conservação- estabilização, de modo a proporcionar um melhor leitura estética de cada núcleo intervencionado.
Num primeiro momento foram feitos os registros fotográficos e gráficos.
Procederam-se a limpeza, fixação de áreas em destacamento e consolidação do suporte com falta de adesão.
Nas torres o tratamento teve de ser ajustado aos fenômenos de biodegradação que se faziam sentir com muita intensidade.
Foram removidos todos os rebocos novos, substituídos por argamassas compatíveis com tonalidade e textura semelhantes às originais tal como as camadas de cal que se sobrepunham à pintura.”
Não há na explicação do catálogo informações detalhadas sobre os procedimentos. São apenas informações gerais. Como, por exemplo, quando é mencionada a necessidade de escoramento no forro, a qual é tida como imprescindível, porém o método empregado para tanto não é explicitado. Observe-se, ainda, o emprego de adjetivação que, indiretamente, enaltece o sucesso da restauração.
A restauradora ao comentar sobre a intervenção, deixa também claro o “partido” de melhor leitura estética e reversibilidade de materiais (Cesare Brandi). Bem como, cita, passo a passo, as etapas que envolveram o procedimento de restauro do mural, quais sejam: limpeza, fixação e consolidação, como também elenca todas as substâncias químicas e métodos empregados no processo (vide relatório técnico em anexo).
Há que se mencionar, ainda, que o relatório técnico é embasado em substancial bibliografia, enquanto que o catálogo não.
Fotografias/Ilustrações
O critério utilizado na escolha das fotografias/ilustrações de ambas as publicações é também identificador dos objetivos a que cada uma se propõe a atingir.
Ou seja, quanto às ilustrações, observa-se que as fotos do catálogo evidenciam a arquitetura do teatro e os resultados finais com fotos coloridas e perfeitas quanto ao visual.
As imagens constantes de um relatório de restauro (vide anexo) são tiradas com foco no detalhe, com o emprego até de fotografias de microscópio, objetivando o registro das patologias existentes, a fim de que possam ser minuciosamente identificadas e tratadas com os métodos adequados. Há, ainda, a preocupação de demonstrarem-se as condições do objeto de restauro antes da restauração, durante o procedimento e o seu resultado final.
Catálogo[1]
[1] As imagens aqui utilizadas não são do catálogo, visto que se trata de um livro não disponível na internet. Contudo, a título de ilustração, foram copiadas imagens disponíveis na internet (http://www.metodo.com.br/empreendimentos/95/Teatro-Jose-de-Alencar.aspx e http://www.mouradubeux.com.br/home/administrador/revista/fotorevista/20.pdf, em 27.11.2010) de mesma natureza, qual seja, fotografias que evidenciam a beleza e suntuosidade do teatro, como também comprovem a “bem” sucedida obra de restauração.
Referencias:
BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Ateliê Editorial, 1ª Ed., Cotia: 2004;
Catálogo: Theatro José de Alencar Obra de restauração 1989/1991;
http://cathedral.lnec.pt/publicacoes2/3.pdf, em 27.11.2010;
http://www.metodo.com.br/empreendimentos/95/Teatro-Jose-de-Alencar.aspx, em 27.11.2010;
http://www.mouradubeux.com.br/home/administrador/revista/fotorevista/20.pdf, em 27.10.2010.